sexta-feira, janeiro 30, 2009

A vida ou a bolsa

Quando ele bateu com aquele cano na minha janela e soltou o óbvio e velho “a bolsa ou a vida”, não hesitei: dei a bolsa, até porque, das duas alternativas, esta era a única possível. Eu já não tinha mais vida há meses.

Aliás, nem sei ao certo se eram mesmo meses. Poderiam ser dias, semanas, anos. Como se tivesse voltado a ser criança, já não tinha mais nenhuma noção do tempo. Lembro como se fosse hoje, eu sempre perguntando para minha mãe depois da aula se aquele era o dia em que teria natação. Eu não tinha noção do tempo. Eu odiava nadar. Assim como odeio praticamente Deus e o mundo, com a diferença que o primeiro fica de fora dessa, pelo simples fato de eu não acreditar na existência dele.

O ladrão pegou minha bolsa e ficou incrédulo quando eu disse “leva a bolsa, porque vida eu já não tenho mais”. Atônito, embora eu duvide muito que ele se descreveria assim naquele momento, caso lhe fosse dada a oportunidade de descrever aquela cena, ele me olhou com um misto de desrespeito e despreparo.

Desrespeito, por motivos óbvios, afinal, ninguém que te respeita enfia um cano na sua janela sem mais nem menos. Despreparo, por sua completa falta de reação num momento como aquele, quando uma de suas vítimas vociferava frases que nem mesmo ela sabia o que significava, mas assim como o verbo vociferar na linha acima, ela sentia a necessidade de usar.

Mesmo assim, sem saber o que falar, ele me encarou por alguns segundos antes de recorrer à solução mais utilizada pelos brasileiros quando não conseguem compreender uma situação: apelou para a religião. “Vai com deus, tio”, foi a frase que me fez rir, enquanto eu ficava aliviado por ter esquecido o celular em casa justo naquela manhã.

sábado, janeiro 24, 2009

Perfeição

Se realmente buscássemos a perfeição, encontraríamos. Alguém que não ronca, alguém que não gruda, alguém que não fica com bafo de cerveja mesmo depois de ter escovado os dentes, alguém que não usa camisa de pai, jaqueta de pai, calça de pai. Alguém que não chega no meio de uma madrugada fria, deita e dorme no seu sofá, depois de ter subornado o porteiro palmeirense com um pedaço de pizza fria, mussarela com aliche, só pra poder te acordar com um beijo na boca e uma declaração de amor não-verbal.

A perfeição, além de não ter a mínima graça, é a virtude dos fracos. Daqueles que não se permitem errar, daqueles que não permitem dar vez ao inesperado, daqueles que não se permitem estragar tudo, só pra depois ter o prazer e a oportunidade de inventar tudo de novo.

A perfeição é tão chata e previsível quanto a programação da tv aberta no final do ano.

A perfeição é um chinelo de dedo apertado que não machuca só os pés de quem usa, mas também os de quem o vê.

Perfeição é usar este mesmo chinelo numa praia recém-amanhecida de ano novo, sem dar uma pequena chance para que todos aqueles caquinhos de vidro que sobraram da noite anterior entrem sorrateiramente na sola do seu pé.

Perfeição é ver o começo como fim, exatamente por ter medo do fim que um dia vai chegar.

sábado, janeiro 10, 2009

Você UVB

Percebi que algo estava bem errado quando você passou protetor solar nas minhas costas, aquela tarde. Quer dizer, não dá nem pra falar que você passou protetor em mim. O que você fez foi besuntar as mãos e dar tapinhas em intervalos e intensidades irregulares pela superfície das minhas costas.

Você nunca tinha feito isso. Passar protetor solar nas minhas costas era uma das suas atividades preferidas (depois, é claro, de ver novela e falar mal das gostosas que faziam academia comigo), que você fazia sempre utilizando a mesma, digamos assim, técnica. Pinceladas suaves de sundown, intercaladas por breves pausas para espremer com suas unhas afiadas e coloridas algum cravinho ou espinha que teimasse em se instalar em uma região em que eu não pudesse vê-lo, mas pudesse (ai, ô!) sentí-lo.

Nunca entendi direito essa sua paixão, mas era algo que me deixava, além de bem protegido contra o sol, feliz. Eu odiavas com todas as minhas forças passar protetor solar em qualquer outra parte do meu corpo que não tivesse nariz. Naquela tarde, porém, seus tapinhas em minhas costas soaram quase como tapas no rosto. Lembro que ameacei até reclamar, mas ao contrário de todas as outras vezes, você estava tão dispersa que aposto que nem ouviria. Me calei. Se minhas costas já não eram mais suficientes para você, não havia o que fazer. No próximo verão, terei que usar boné.